O Superior Tribunal de Justiça, em mais uma
decisão de suma importância, reconheceu a exclusiva legitimidade jurídica do "bafômetro"
e do exame sanguíneo para a comprovação da embriaguez daquele que conduz um
veículo automotor. Somente através destes meios de prova será possível a
condenação criminal do condutor embriagado.
Este entendimento pretoriano tem sido objeto de
severas críticas, algumas delas, com o devido respeito aos meus colegas,
passíveis de falhas técnico-jurídicas.
O repúdio à decisão, até certo ponto, é normal e compreensível. A sociedade está estarrecida
com o número de graves acidentes provocados por motoristas embriagados. Várias
vidas foram perdidas ao longo dos últimos anos. A anomia (sensação de
impunidade) nos "salta aos olhos". Entretanto, pedindo vênia
mais uma vez aos meus colegas que não comungam do entendimento do Superior
Tribunal de Justiça, o cientista do Direito não pode "enxergar"
uma norma jurídica "com os mesmos olhos" de uma pessoa juridicamente leiga. O jurista não pode
deixar "se contaminar" pelo clamor público; pelo calor dos
ânimos; pela pressão social. Deve ter em mente as peculiaridades do Direito
que, como toda e qualquer ciência, é composto por princípios próprios, por
regras próprias e por métodos inconfundíveis de aplicação, dentre eles, a
premissa de que a Constituição Formal
(como a brasileira atualmente em vigor) é hierarquicamente superior a toda e qualquer
forma de manifestação estatal,
inclusive às leis. Infelizmente, nosso legislador produziu um dispositivo
legal (art. 306 do Código de Trânsito -
Lei n.º 9.503/97) que já nasceu absolutamente desprovido de efetividade ou de
praticidade. Vejamos.
O Código de Trânsito veiculou um tipo penal para criminalizar a conduta do irresponsável condutor que dirige veículo
automotor após fazer uso de bebidas alcoólicas. A criminalização em si é constitucionalmente legítima, posto que visa
à proteção da vida e integridade física de terceiros colocadas em risco pelo
condutor embriagado. Não se questiona, pois, esta nobre finalidade buscada pelo
legislador.
Entretanto, a estrutura do tipo foi completamente
equivocada, pois trouxe como uma de suas elementares a quantidade mínima de
álcool por litro de sangue para que o crime reste consumado. Apreciemos "ipsis literis" o conteúdo do preceito
primário do tipo normatizado pelo art.
306 do Código de Trânsito:
"Conduzir
veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por
litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a
influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência."
(grifei).
Estas elementares de caráter estritamente
(puramente) objetivo ("igual ou superior a
6 decigramas"), por
questões de segurança jurídica e para evitar eventual abuso de autoridade
daqueles que fiscalizam o trânsito, somente podem ser comprovadas por meios
científicos, quais sejam: o teste do "bafômetro" ou o exame de
sangue, ambos provas periciais. Nestes termos, ainda que possível a deflagração
da persecução penal, a prolação de uma sentença penal condenatória somente será
viável se o suposto criminoso abdicar do seu direito fundamental de não se
auto-incriminar ou de não produzir prova contra si mesmo ("nemo tenetur sine detegere").
O legislador infraconstitucional
não pode negar ao cidadão este direito fundamental. A sociedade, também, não
pode negligenciar a eficácia jurídica
da Constituição Federal de 1988 e da
Convenção Interamericana dos Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) para pleitear uma condenação criminal
alheia ao devido processo legal. Os fins não justificam os meios. Uma
condenação somente será legítima se em perfeita harmonia com os direitos
fundamentais previstos no texto constitucional
e nos tratados internacionais de
direitos humanos.
O equívoco estatal reside na própria lei, e não
na decisão do Superior Tribunal de Justiça que nada mais fez do que assegurar a
força normativa da Constituição e a
máxima efetividade dos direitos fundamentais. Outro não parece ser o entendimento do professor Aury Lopes Jr. Segundo este moderno e ímpar pensador dos Direitos Penal e Processual Penal Constitucionais, “... todos já sabem da ultima decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre a
necessidade de que a embriaguez seja comprovada pelo uso do etilômetro (“bafômetro”).
Mas a questão deve ser pensada à luz do cotejo dos arts. 158 e 167 do Código de Processo Penal, de
onde se extrai a seguinte regra: os crimes materiais exigem o exame de corpo de
delito direto para comprovação de sua existência (materialidade).
Excepcionalmente, pode ser admitido o exame indireto (art.167), através de
prova testemunhal, filmagens, áudios, etc. Mas só quando não for possível o
exame direto (logo, impossibilidade real) o indireto pode suprir-lhe a falta. A
questão que proponho é: mas será que o exame indireto pode realmente suprir o
direto em qualquer crime material? Posso admitir uma condenação por trafico de
drogas porque alguém presenciou outrem transportando e vendendo um pó branco
que parecia cocaína? Ou seja, existem crimes que por sua natureza e o “corpus
delicti” que o constituem, não admitem o exame indireto. Como comprovar a
ingestão de 6 decigramas senão através de equipamento adequado? O problema
aqui é a especificidade quantitativa exigida pelo legislador, que não admite
aferição indireta...” (grifei).
Não estou, aqui, defendendo a impunidade. A criminalização da conduta de dirigir
embriagado e, consequentemente, a reprimenda penal aplicada através do devido
processo legal são necessárias. Para tanto, basta que o legislador altere o
tipo em vigor, suprimindo a quantidade mínima de álcool por litro de sangue.
Assim, outros meios de prova como, por exemplo, a testemunhal e o exame clínico
serão absolutamente legítimas.
Resumindo: o Superior Tribunal de Justiça, como
sempre se deve esperar do Poder Judiciário, embora não o tenha dito
expressamente, interpretou o art. 306
do Código de Trânsito (Lei n.º 9.503/1997) conforme à Constituição ao limitar os meios de
comprovação do estado de embriaguez. Prevaleceu, assim, a máxima efetividade
dos direitos fundamentais, dentre eles o de não auto-incriminação.
Que esta decisão sirva de verdadeira lição ao
legislador que, ultimamente ("obiter
dictum"), tem desenvolvido a
atividade legiferante se esquecendo de que acima dele e de quaisquer dos
Poderes Constituídos existe a Constituição
da República Federativa do Brasil, cujas regras e princípios não são promessas
inconsequentes; não são meros convites à atuação dos Poderes Públicos, mas sim
genuínas normas jurídicas prescritivas de dever-ser que, nesta toada, vinculam
a todos.
Aguardemos que o legislador revogue o quanto
antes o art. 306 do Código de Trânsito
e rezemos (bastante!) para que produza um novo tipo penal que seja executável e
suficiente para punir e prevenir novos acidentes no trânsito, sem que reste
comprometida a integridade do texto constitucional.
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