segunda-feira, 2 de abril de 2012

Embriaguez ao volante e o Superior Tribunal de Justiça


O Superior Tribunal de Justiça, em mais uma decisão de suma importância, reconheceu a exclusiva legitimidade jurídica do "bafômetro" e do exame sanguíneo para a comprovação da embriaguez daquele que conduz um veículo automotor. Somente através destes meios de prova será possível a condenação criminal do condutor embriagado.

Este entendimento pretoriano tem sido objeto de severas críticas, algumas delas, com o devido respeito aos meus colegas, passíveis de falhas técnico-jurídicas.

O repúdio à decisão, até certo ponto, é normal e compreensível. A sociedade está estarrecida com o número de graves acidentes provocados por motoristas embriagados. Várias vidas foram perdidas ao longo dos últimos anos. A anomia (sensação de impunidade) nos "salta aos olhos". Entretanto, pedindo vênia mais uma vez aos meus colegas que não comungam do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o cientista do Direito não pode "enxergar" uma norma jurídica "com os mesmos olhos" de uma pessoa juridicamente leiga. O jurista não pode deixar "se contaminar" pelo clamor público; pelo calor dos ânimos; pela pressão social. Deve ter em mente as peculiaridades do Direito que, como toda e qualquer ciência, é composto por princípios próprios, por regras próprias e por métodos inconfundíveis de aplicação, dentre eles, a premissa de que a Constituição Formal (como a brasileira atualmente em vigor) é hierarquicamente superior a toda e qualquer forma de manifestação estatal, inclusive às leis. Infelizmente, nosso legislador  produziu um dispositivo legal (art. 306 do Código de Trânsito - Lei n.º 9.503/97) que já nasceu absolutamente desprovido de efetividade ou de praticidade. Vejamos.

O Código de Trânsito veiculou um tipo penal para criminalizar a conduta do irresponsável condutor que dirige veículo automotor após fazer uso de bebidas alcoólicas. A criminalização em si é constitucionalmente legítima, posto que visa à proteção da vida e integridade física de terceiros colocadas em risco pelo condutor embriagado. Não se questiona, pois, esta nobre finalidade buscada pelo legislador.

Entretanto, a estrutura do tipo foi completamente equivocada, pois trouxe como uma de suas elementares a quantidade mínima de álcool por litro de sangue para que o crime reste consumado. Apreciemos "ipsis literis" o conteúdo do preceito primário do tipo normatizado pelo art. 306 do Código de Trânsito:

"Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência." (grifei).

 Estas elementares de caráter estritamente (puramente) objetivo ("igual ou superior a 6 decigramas"), por questões de segurança jurídica e para evitar eventual abuso de autoridade daqueles que fiscalizam o trânsito, somente podem ser comprovadas por meios científicos, quais sejam: o teste do "bafômetro" ou o exame de sangue, ambos provas periciais. Nestes termos, ainda que possível a deflagração da persecução penal, a prolação de uma sentença penal condenatória somente será viável se o suposto criminoso abdicar do seu direito fundamental de não se auto-incriminar ou de não produzir prova contra si mesmo ("nemo tenetur sine detegere").

O legislador infraconstitucional não pode negar ao cidadão este direito fundamental. A sociedade, também, não pode negligenciar a eficácia jurídica da Constituição Federal de 1988 e da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) para pleitear uma condenação criminal alheia ao devido processo legal. Os fins não justificam os meios. Uma condenação somente será legítima se em perfeita harmonia com os direitos fundamentais previstos no texto constitucional e nos tratados internacionais de direitos humanos.

O equívoco estatal reside na própria lei, e não na decisão do Superior Tribunal de Justiça que nada mais fez do que assegurar a força normativa da Constituição e a máxima efetividade dos direitos fundamentais. Outro não parece ser o entendimento do professor Aury Lopes Jr. Segundo este moderno e ímpar pensador dos Direitos Penal e Processual Penal Constitucionais, “... todos já sabem da ultima decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre a necessidade de que a embriaguez seja comprovada pelo uso do etilômetro (“bafômetro”). Mas a questão deve ser pensada à luz do cotejo dos arts. 158 e 167 do Código de Processo Penal, de onde se extrai a seguinte regra: os crimes materiais exigem o exame de corpo de delito direto para comprovação de sua existência (materialidade). Excepcionalmente, pode ser admitido o exame indireto (art.167), através de prova testemunhal, filmagens, áudios, etc. Mas só quando não for possível o exame direto (logo, impossibilidade real) o indireto pode suprir-lhe a falta. A questão que proponho é: mas será que o exame indireto pode realmente suprir o direto em qualquer crime material? Posso admitir uma condenação por trafico de drogas porque alguém presenciou outrem transportando e vendendo um pó branco que parecia cocaína? Ou seja, existem crimes que por sua natureza e o “corpus delicti” que o constituem, não admitem o exame indireto. Como comprovar a ingestão de 6 decigramas senão através de equipamento adequado? O problema aqui é a especificidade quantitativa exigida pelo legislador, que não admite aferição indireta...” (grifei).

Não estou, aqui, defendendo a impunidade. A criminalização da conduta de dirigir embriagado e, consequentemente, a reprimenda penal aplicada através do devido processo legal são necessárias. Para tanto, basta que o legislador altere o tipo em vigor, suprimindo a quantidade mínima de álcool por litro de sangue. Assim, outros meios de prova como, por exemplo, a testemunhal e o exame clínico serão absolutamente legítimas.

Resumindo: o Superior Tribunal de Justiça, como sempre se deve esperar do Poder Judiciário, embora não o tenha dito expressamente, interpretou o art. 306 do Código de Trânsito (Lei n.º 9.503/1997) conforme à Constituição ao limitar os meios de comprovação do estado de embriaguez. Prevaleceu, assim, a máxima efetividade dos direitos fundamentais, dentre eles o de não auto-incriminação. 

Que esta decisão sirva de verdadeira lição ao legislador que, ultimamente ("obiter dictum"), tem desenvolvido a atividade legiferante se esquecendo de que acima dele e de quaisquer dos Poderes Constituídos existe a Constituição da República Federativa do Brasil, cujas regras e princípios não são promessas inconsequentes; não são meros convites à atuação dos Poderes Públicos, mas sim genuínas normas jurídicas prescritivas de dever-ser que, nesta toada, vinculam a todos.

Aguardemos que o legislador revogue o quanto antes o art. 306 do Código de Trânsito e rezemos (bastante!) para que produza um novo tipo penal que seja executável e suficiente para punir e prevenir novos acidentes no trânsito, sem que reste comprometida a integridade do texto constitucional.

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