segunda-feira, 9 de abril de 2012

STJ ESPECIAL - Vício redibitório e CDC, os vários caminhos para desfazer um mau negócio.


ESPECIAL STJ
"Vício redibitório e CDC, os vários caminhos para desfazer um mau negócio
Muitas pessoas já depararam com a seguinte situação: adquiriram um bem por meio de contrato, por exemplo, um contrato de compra e venda, e depois de algum tempo descobriram que o objeto desse contrato possuía defeito ou vício – oculto no momento da compra – que o tornou impróprio para uso ou diminuiu-lhe o valor. Casos de vícios em imóveis ou em automóveis são bastante recorrentes.

Para regular tal situação, o Código Civil (CC) prevê a redibição (daí o termo vício redibitório), que é a anulação judicial do contrato ou o abatimento no seu preço. Os casos de vício redibitório são caracterizados quando um bem adquirido tem seu uso comprometido por um defeito oculto, de tal forma que, se fosse conhecido anteriormente por quem o adquiriu, o negócio não teria sido realizado.

Além da anulação do contrato, o CC prevê no artigo 443 a indenização por perdas e danos. Se o vício já era conhecido por quem transferiu a posse do bem, o valor recebido deverá ser restituído, acrescido de perdas e danos; caso contrário, a restituição alcançará apenas o valor recebido mais as despesas do contrato.

De caráter bem mais abrangente, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) representou grande evolução para as relações de consumo e ampliou o leque de possibilidades para a solução de problemas, incluindo os casos de vícios redibitórios. A lei de proteção ao consumidor preza “pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho”, conforme prevê o artigo 4º, inciso II, alínea d.

Desde 1990, quando foi promulgado o CDC, o instituto do vício redibitório perdeu espaço na proteção dos direitos do consumidor. O código consumerista impõe responsabilidade ampla ao fornecedor diante de defeitos do produto ou do serviço, independentemente das condições que a lei exige para o reconhecimento do vício redibitório – como, por exemplo, a existência de contrato ou o fato de o vício ser oculto e anterior ao fechamento do negócio.

No entanto, o instituto do vício redibitório continua relevante nas situações não cobertas pelo CDC, como são as transações entre empresas (desde que não atendam às exigências do código para caracterizar relação de consumo) e muitos negócios praticados entre pessoas físicas.

Em diversos julgamentos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem interpretado as disposições do CC e do CDC no que diz respeito aos vícios redibitórios. Acompanhe alguns pronunciamentos do Tribunal acerca do assunto.

Vício redibitório x vício de consentimento

A Terceira Turma do STJ, ao julgar o REsp 991.317, estabeleceu a distinção entre vício redibitório e vício de consentimento, advindo de erro substancial. Para a ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso, o tema é delicado e propício a confusões, principalmente pela existência de teorias que tentam explicar a responsabilidade pelos vícios redibitórios sustentando que derivam da própria ignorância de quem adquiriu o produto.

Naquele processo, foi adquirido um lote de sapatos para revenda. Os primeiros seis pares vendidos apresentaram defeito (quebra do salto) e foram devolvidos pelos consumidores. Diante disso, a venda dos outros pares foi suspensa para devolução de todo o lote, o que foi recusado pela empresa fabricante.

Em segunda instância, a hipótese foi considerada erro substancial. Segundo acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), a razão exclusiva do consentimento do comprador do lote de sapatos era “a certeza de que as mercadorias adquiridas possuíam boa qualidade, cuja inexistência justifica a anulação da avença”.

Entretanto, no entendimento da ministra Nancy Andrighi, quem adquiriu o lote de sapatos não incorreu em erro substancial, pois recebeu exatamente aquilo que pretendia comprar. A relatora entendeu que “os sapatos apenas tinham defeito oculto nos saltos, que os tornou impróprios para o uso”.

“No vício redibitório o contrato é firmado tendo em vista um objeto com atributos que, de uma forma geral, todos confiam que ele contenha. Mas, contrariando a expectativa normal, a coisa apresenta um vício oculto a ela peculiar, uma característica defeituosa incomum às demais de sua espécie”, disse a ministra.

Segundo ela, os vícios redibitórios não são relacionados à percepção inicial do agente, mas à presença de uma disfunção econômica ou de utilidade no objeto do negócio. “O erro substancial alcança a vontade do contratante, operando subjetivamente em sua esfera mental”, sustentou.

Prazo para reclamar

Em relação aos vícios ocultos, o CDC dispõe no artigo 26, parágrafo 3º, que o prazo para que o consumidor reclame inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito.

No julgamento do REsp 1.123.004, o ministro Mauro Campbell entendeu que, caracterizado vício oculto, o prazo decadencial inicia a partir da data em que o defeito for evidenciado, ainda que haja uma garantia contratual. Contudo, não se pode abandonar o critério da vida útil do bem durável, para que o fornecedor não fique responsável por solucionar o vício eternamente.

Diante disso, o ministro reformou decisão que considerou afastada a responsabilidade do fornecedor do produto, nos casos em que o defeito for detectado após o término do prazo de garantia legal ou contratual.

No REsp 1.171.635, o desembargador convocado Vasco Della Giustina, da Terceira Turma, concluiu que a inércia do consumidor em proceder à reclamação dentro do prazo de caducidade autoriza a extinção do processo com resolução do mérito, conforme orienta o artigo 269, inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC).

O consumidor adquiriu dois triciclos e, menos de um mês depois, descobriu certo problema no seu funcionamento. Depois de idas e vindas buscando uma solução, passados seis meses, registrou reclamação no Procon. Somente após mais de um ano, o consumidor intentou ação judicial.

“Esta Corte Superior já se manifestou pela inexistência de ilegalidade, quando o inconformismo do consumidor ocorre em data superior ao prazo de decadência”, afirmou o relator.

Quem responde?

No julgamento do REsp 1.014.547, a Quarta Turma decidiu que a responsabilidade por defeito constatado em automóvel, adquirido por meio de financiamento bancário, é exclusiva do vendedor, pois o problema não se relaciona às atividades da instituição financeira.

Uma consumidora adquiriu uma Kombi usada, que apresentou defeitos antes do término da garantia – 90 dias. O automóvel havia sido adquirido por meio de uma entrada, paga diretamente à revendedora, e o restante financiado pelo Banco Itaú.

A consumidora ingressou em juízo e, em primeira instância, obteve a rescisão do contrato de compra e venda, bem como do financiamento firmado com o banco. Ambos foram condenados solidariamente a restituírem os valores das parcelas pagas e, além disso, a revendedora foi condenada a indenizar a autora por danos morais. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) manteve a sentença.

Inconformado, o Banco Itaú recorreu ao STJ e apontou violação dos artigos 14 e 18 do CDC. Sustentou que o contrato de financiamento seria distinto do de compra e venda do veículo, firmado com a empresa revendedora. Sendo assim, os defeitos seriam referentes ao veículo e isso não importaria nenhum vício no contrato de financiamento.

Segundo o ministro João Otávio de Noronha, a instituição financeira não pode ser tida por fornecedora do bem que lhe foi ofertado como garantia de financiamento. O ministro explicou que as disposições do CDC incidem sobre a instituição bancária apenas na parte referente aos serviços que presta, ou seja, à sua atividade financeira.

Para ele, a consumidora formalizou dois contratos distintos. “Em relação ao contrato de compra e venda do veículo e o mútuo com a instituição financeira, inexiste, portanto, acessoriedade, de sorte que um dos contratos não vincula o outro nem depende do outro”, sustentou.

Imóveis

Já em relação a defeitos existentes em imóvel financiado pela Caixa Econômica Federal (CEF), a Quarta Turma decidiu, ao julgar o REsp 738.071, que a instituição financeira era parte legítima para responder, juntamente com a construtora, por vícios na construção do imóvel cuja obra foi por ela financiada com recursos do Sistema Financeiro de Habitação (SFH).

A CEF recorreu ao STJ argumentando que não teria responsabilidade solidária pelos vícios de construção existentes no imóvel, localizado no Conjunto Habitacional Ângelo Guolo, em Cocal do Sul (SC), destinado a moradores de baixa renda.

O ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso especial, explicou que a legitimidade passiva da instituição financeira não decorreria simplesmente do fato de haver financiado a obra, mas de ter provido o empreendimento, elaborado o projeto com todas as especificações, escolhido a construtora e de ter negociado diretamente, dentro do programa de habitação popular.

Segundo entendimento majoritário da Quarta Turma nesse julgamento, a responsabilidade da CEF em casos que envolvem vícios de construção em imóveis financiados por ela deve ser analisada caso a caso, a partir da regulamentação aplicável a cada tipo de financiamento e das obrigações assumidas pelas partes envolvidas."
 
Fonte:  http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105287&utm_source=agencia&utm_medium=email&utm_campaign=pushsco 

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Amizade pura e verdadeira: infelizmente, um sentimento em extinção


Pessoal, fugindo um pouco do debate jurídico, proponho a leitura da seguinte experiência que vivi. Sugiro a todos uma reflexão (ainda que breve!) sobre um dos sentimentos mais nobres do ser humano: a amizade. 

Sem delongas, vamos ao texto:

Engraçado, constantemente coloco-me a refletir: um dos ditados populares mais corretos e adequados é o que assevera ser “o cachorro o melhor amigo do homem”. E não foi a toa que me aderi incondicionalmente a esta genuína lição popular.

Quando eu tinha por volta de 09 (nove) anos de idade, saí de Francisco Sá (Distrito do Município de Carlos Chagas/MG) e fui passar as férias escolares com minha querida irmã Adriana Arrieiro Continentino Costa e com meu prezado (ou melhor, exemplar) cunhado Sylo Costa Júnior em Belo Horizonte/MG.

Sylo Júnior que, naquela época (não tão longínqua assim) tinha uma cabeleira de fazer inveja a Sanção e Rapunzel, deixando aflorar um romantismo digno de Don Juan e Clarck Gable (aquele mesmo, de "O Ventou Levou"!), presenteou minha irmã com um lindo cachorro da raça “Old English Sheep Dog”. Como era indescritível este animal. Pelagem branca e cinza que confortava límpidos olhos azuis. Que saudades Rodolfo!

Eu, embasbacado com o presente que minha irmã acabara de ganhar, não tive dúvidas: liguei imediatamente para minha mãe (Maria Tereza Arrieiro) e para meu pai Armando que estavam na fazenda em Francisco Sá e supliquei: "mãe, pai, pelo amor de Deus eu quero um Sheep Dog!”. E qual a resposta à minha súplica? Vocês acham que meus pais teriam a coragem de frustrar meu pedido, ainda mais da forma como o formulei (pressão psicológica pura)? Que nada, no outro dia fui a um canil com minha irmã e meu cunhado para compramos o bichinho. 

Quando lá chegamos havia uma porção, centenas de “Sheep Dogs”, mas um deles logo me chamou a atenção e acho (ou melhor, tenho certeza!) que também chamei a atenção dele. Que cachorro lindo, mais parecia uma bola de pêlos. Achei que fosse um típico torcedor do atlético mineiro. Pelagem fina e macia, metade dela preta, metade dela branca com uma mancha preta imponente nos pêlos que encobriam o olho esquerdo. Como ele pulava de alegria! A ternura com que me olhava parecia dizer: "ei, menino, gostei de você! Me leve pra casa, por favor?" Sem titubear, prolatei logo minha sentença: "Drica, Cáca, é este que eu quero e ele vai se chamar “Jean Pierre” (um bravo herói protagonizado por Edson Celulari na novela "Que rei sou eu"). 

Pronto, nascia neste momento uma das minhas maiores e inesquecíveis amizades. Que surpresa boa a vida reservara-me naquele exato instante! 

Agora, só faltava um detalhe: como um cachorro tão peludo iria viver numa fazenda, sobretudo exposto a um calor de "rachar mamona" como aquele que “derretia” o Povoado de Francisco Sá? Resolvi “pagar pra ver” (e não me arrependi). Então, fomos nós, eu e Jam (que não era mais Jean!) desbravar as terras dos Amorim e Taroni.

Depois de muitas horas de viagem, enfim chegamos. Ao abrir a porta do carro ele, que até então não havia saído um minuto sequer do meu colo, logo ganhou o calçamento e se apresentou ao povoado que, acreditem, simplesmente parou. As pessoas de “Chico Sá”, ao se depararem com o Jam, reagiram de distintas formas: uns correram e outros sorriram, mas todos concordaram: não existia cachorro igual. Até meu pai Armando, que não tinha lá muita simpatia por cachorros, não resistiu aos encantos do Jam.

O tempo, como uma brisa soprando na imensidão do mar, foi passando. Nossa amizade se tornava cada vez mais forte e intensa. Brincávamos, corríamos, nadávamos numa represa de águas cristalinas. Brincávamos até de esconder. Eu pedia pra ele esperar. Daí me escondia, geralmente, nas partes mais altas das árvores e, após me sentir seguro em meu esconderijo, gritava: "Jaaammmmmm!". E lá vinha ele com uma velocidade que não era comum aos cachorros de sua raça. Procurava-me incansavelmente. Corria pra lá e pra cá. Farejava até faltar-lhe o ar. Mas sempre acabava me encontrando. Ele jamais deixou de me procurar. Ele jamais de mim desistiu!

Mas o tempo, agora, infelizmente, continuava soprando como uma brisa na imensidão do mar. Jam foi ficando velho. Aos poucos foi perdendo todo seu vigor físico, mas, paradoxalmente, sua amizade por mim só fazia aumentar. Sua adoração pela pessoa que vos fala seguia a lógica dos bons vinhos: "quanto mais velho melhor e mais consistente". 

Eu queria paralisar a passagem de tempo. Desejava, com todas as minhas forças, que meu melhor amigo me fizesse companhia, ao menos, por mais alguns dias. Entretanto, meu desejo não se tornou realidade. Exatamente no dia em que o Brasil chorou a trágica morte dos integrantes da banda “Mamonas Assassinas”, eu chorei a perda de Jam. Lembro-me perfeitamente: após chegar da Escola Estadual do Povoado de Francisco Sá, desci do meu cavalo e, antes mesmo de chamar por meu cachorro (já pressentindo o pior), avistei minha mãe sentada no sofá da sala. Quando ela me viu, não conteve um filete de lágrima em seus olhos que, inexoravelmente, insistiu em escorrer pelo seu rosto. Meu pai Armando estava no jardim, absolutamente desolado com a perda de um animal que aprendeu a amar.

Neste momento pude perceber que havia terminado uma era. Uma era de amizade, de companheirismo e de lealdade. 

Como já disse neste texto, o Jam nunca desistiu de mim. Nunca deixou de me procurar. Eu, também, nunca me esqueci do meu cachorro e serei eternamente grato a ele por todos os momentos inesquecíveis que me proporcionou. As brincadeiras, as peripécias, as travessuras, o carinho, os pulos (e que pulos!) de alegria quando me via, o choro ao me ver montado em meu cavalo para ir à escola e tantos outros momentos guardarei em minha grata lembrança até o fim dos meus dias, pois, como diz Milton Nascimento: “amigo é coisa pra se guardar, debaixo de sete chaves, dentro do coração...

Ficam as saudades, mas a vida não pode parar. Não desistirei dos meus objetivos, dos meus ideais e das minhas convicções, nos mesmos moldes do Jam que em momento algum desistiu ou menosprezou nossa eterna amizade. Sugiro que todos os meus amigos façam o mesmo!

Sigamos, então, da melhor forma possível o longo, prazeroso, mas tortuoso caminho da vida, não é Guttinho? (meu novo cachorro)

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Embriaguez ao volante e o Superior Tribunal de Justiça


O Superior Tribunal de Justiça, em mais uma decisão de suma importância, reconheceu a exclusiva legitimidade jurídica do "bafômetro" e do exame sanguíneo para a comprovação da embriaguez daquele que conduz um veículo automotor. Somente através destes meios de prova será possível a condenação criminal do condutor embriagado.

Este entendimento pretoriano tem sido objeto de severas críticas, algumas delas, com o devido respeito aos meus colegas, passíveis de falhas técnico-jurídicas.

O repúdio à decisão, até certo ponto, é normal e compreensível. A sociedade está estarrecida com o número de graves acidentes provocados por motoristas embriagados. Várias vidas foram perdidas ao longo dos últimos anos. A anomia (sensação de impunidade) nos "salta aos olhos". Entretanto, pedindo vênia mais uma vez aos meus colegas que não comungam do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o cientista do Direito não pode "enxergar" uma norma jurídica "com os mesmos olhos" de uma pessoa juridicamente leiga. O jurista não pode deixar "se contaminar" pelo clamor público; pelo calor dos ânimos; pela pressão social. Deve ter em mente as peculiaridades do Direito que, como toda e qualquer ciência, é composto por princípios próprios, por regras próprias e por métodos inconfundíveis de aplicação, dentre eles, a premissa de que a Constituição Formal (como a brasileira atualmente em vigor) é hierarquicamente superior a toda e qualquer forma de manifestação estatal, inclusive às leis. Infelizmente, nosso legislador  produziu um dispositivo legal (art. 306 do Código de Trânsito - Lei n.º 9.503/97) que já nasceu absolutamente desprovido de efetividade ou de praticidade. Vejamos.

O Código de Trânsito veiculou um tipo penal para criminalizar a conduta do irresponsável condutor que dirige veículo automotor após fazer uso de bebidas alcoólicas. A criminalização em si é constitucionalmente legítima, posto que visa à proteção da vida e integridade física de terceiros colocadas em risco pelo condutor embriagado. Não se questiona, pois, esta nobre finalidade buscada pelo legislador.

Entretanto, a estrutura do tipo foi completamente equivocada, pois trouxe como uma de suas elementares a quantidade mínima de álcool por litro de sangue para que o crime reste consumado. Apreciemos "ipsis literis" o conteúdo do preceito primário do tipo normatizado pelo art. 306 do Código de Trânsito:

"Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência." (grifei).

 Estas elementares de caráter estritamente (puramente) objetivo ("igual ou superior a 6 decigramas"), por questões de segurança jurídica e para evitar eventual abuso de autoridade daqueles que fiscalizam o trânsito, somente podem ser comprovadas por meios científicos, quais sejam: o teste do "bafômetro" ou o exame de sangue, ambos provas periciais. Nestes termos, ainda que possível a deflagração da persecução penal, a prolação de uma sentença penal condenatória somente será viável se o suposto criminoso abdicar do seu direito fundamental de não se auto-incriminar ou de não produzir prova contra si mesmo ("nemo tenetur sine detegere").

O legislador infraconstitucional não pode negar ao cidadão este direito fundamental. A sociedade, também, não pode negligenciar a eficácia jurídica da Constituição Federal de 1988 e da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) para pleitear uma condenação criminal alheia ao devido processo legal. Os fins não justificam os meios. Uma condenação somente será legítima se em perfeita harmonia com os direitos fundamentais previstos no texto constitucional e nos tratados internacionais de direitos humanos.

O equívoco estatal reside na própria lei, e não na decisão do Superior Tribunal de Justiça que nada mais fez do que assegurar a força normativa da Constituição e a máxima efetividade dos direitos fundamentais. Outro não parece ser o entendimento do professor Aury Lopes Jr. Segundo este moderno e ímpar pensador dos Direitos Penal e Processual Penal Constitucionais, “... todos já sabem da ultima decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre a necessidade de que a embriaguez seja comprovada pelo uso do etilômetro (“bafômetro”). Mas a questão deve ser pensada à luz do cotejo dos arts. 158 e 167 do Código de Processo Penal, de onde se extrai a seguinte regra: os crimes materiais exigem o exame de corpo de delito direto para comprovação de sua existência (materialidade). Excepcionalmente, pode ser admitido o exame indireto (art.167), através de prova testemunhal, filmagens, áudios, etc. Mas só quando não for possível o exame direto (logo, impossibilidade real) o indireto pode suprir-lhe a falta. A questão que proponho é: mas será que o exame indireto pode realmente suprir o direto em qualquer crime material? Posso admitir uma condenação por trafico de drogas porque alguém presenciou outrem transportando e vendendo um pó branco que parecia cocaína? Ou seja, existem crimes que por sua natureza e o “corpus delicti” que o constituem, não admitem o exame indireto. Como comprovar a ingestão de 6 decigramas senão através de equipamento adequado? O problema aqui é a especificidade quantitativa exigida pelo legislador, que não admite aferição indireta...” (grifei).

Não estou, aqui, defendendo a impunidade. A criminalização da conduta de dirigir embriagado e, consequentemente, a reprimenda penal aplicada através do devido processo legal são necessárias. Para tanto, basta que o legislador altere o tipo em vigor, suprimindo a quantidade mínima de álcool por litro de sangue. Assim, outros meios de prova como, por exemplo, a testemunhal e o exame clínico serão absolutamente legítimas.

Resumindo: o Superior Tribunal de Justiça, como sempre se deve esperar do Poder Judiciário, embora não o tenha dito expressamente, interpretou o art. 306 do Código de Trânsito (Lei n.º 9.503/1997) conforme à Constituição ao limitar os meios de comprovação do estado de embriaguez. Prevaleceu, assim, a máxima efetividade dos direitos fundamentais, dentre eles o de não auto-incriminação. 

Que esta decisão sirva de verdadeira lição ao legislador que, ultimamente ("obiter dictum"), tem desenvolvido a atividade legiferante se esquecendo de que acima dele e de quaisquer dos Poderes Constituídos existe a Constituição da República Federativa do Brasil, cujas regras e princípios não são promessas inconsequentes; não são meros convites à atuação dos Poderes Públicos, mas sim genuínas normas jurídicas prescritivas de dever-ser que, nesta toada, vinculam a todos.

Aguardemos que o legislador revogue o quanto antes o art. 306 do Código de Trânsito e rezemos (bastante!) para que produza um novo tipo penal que seja executável e suficiente para punir e prevenir novos acidentes no trânsito, sem que reste comprometida a integridade do texto constitucional.