domingo, 20 de março de 2011

Da incidência do ISSQN sobre o Fomento Mercantil




A relação de dependência entre o Direito Tributário e demais conceitos oriundos do Direito Privado faz do fenômeno tributário um dos elementos mais fascinantes e complexos do universo jurídico. Tudo por que, muitas vezes, a devida compreensão da incidência tributária é condicionada ao estudo paralelo de institutos provenientes da esfera cível, exigindo que ambos sejam considerados lado a lado pelo intérprete.

Neste contexto está imerso o cerne do presente ensaio, já que a incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN sobre o fomento mercantil só restará univocamente desenhada ao considerarmos, de modo harmônico, os elementos que norteiam a descrita exação, bem como as características que perfazem o instituto de natureza privada.

Todavia, parte da doutrina e jurisprudência pátria insiste em vislumbrar o fomento mercantil somente pelo aspecto da aquisição de créditos (obrigação de dar), fechando os olhos para as demais atividades operadas pelo factor, culminando em interpretações equivocadas no tocante a incidência do ISSQN sobre o factoring.

Noutra face, a incidência do tributo é justificada pelo simples fato da lista de serviços, anexa à lei complementar 116/03, inserir o factoring em 2 (dois) de seus 40 (quarenta) grupos de serviços, prevalecendo, portanto, a generalidade desta atividade para confirmar os supostos efeitos na esfera tributária.

Assim, vislumbra-se que nenhum dos posicionamentos doutrinários acima expendidos possui fundamento concreto para determinar ou não a incidência do ISSQN sobre o factoring, exigindo, então, que se conheça a aludida atividade empresarial para depois inseri-la no campo de incidência do tributo municipal em análise.

Deste modo, o fomento mercantil, em regra, compreende (no âmbito de suas atribuições) as seguintes operações: venda e compra de créditos e a prestação de serviços convencionais ou diferenciados. Em outras linhas, o factoring congrega tanto obrigações de dar, quanto obrigações de fazer, respectivamente.


A complexidade que caracteriza o instituto do fomento mercantil, a nosso sentir, não constitui fundamento válido a fim de afastar a incidência do ISSQN sobre esta atividade, já que o objeto da exação pode ser perfeitamente destacado nas tarefas diárias (intrínsecas ao campo de atuação do factor).


Conforme é cediço, o critério material do ISSQN é adstrito a “efetiva prestação de serviços”, denotando, portanto, uma obrigação de fazer. De sorte que, a aquisição de créditos, realizada pela casa de fomento mercantil, não delineia uma obrigação de fazer, motivo pelo qual não ensejará o tributo em análise.

Nem mesmo o fato do factoring estar contido no rol dos serviços alcançados pelo ISSQN autoriza a extensão dos efeitos da aquisição de créditos para fins de incidência do tributo, haja vista o instituto não ser disposto de forma genérica na referida lista, mas inserido em grupos econômicos específicos, cujo objeto remete invariavelmente a obrigações de fazer.


Uma vez estabelecido que a incidência do ISSQN sobre o fomento mercantil dá-se apenas com relação aquelas obrigações de fazer, a escorreita aferição do que é ou não tributável, somente ocorrerá se analisadas individualmente as modalidades que perfazem o factoring no Brasil.


Na modalidade “factoring convencional”, a incidência do ISSQN não transcenderá o âmbito dos chamados serviços convencionais (tais como análise de crédito e sua respectiva cobrança) que, por sua vez, caracterizam obrigação de fazer inerente ao critério material da exação. Desta maneira, a aquisição de crédito pelo factor ficará a margem não apenas do critério material do ISSQN, mas, ainda, de seu critério quantitativo, sendo o quantum debeatur representado pelo preço (ad valorem) ajustado pela prestação dos serviços convencionais.


No “factoring trustee” a incidência do ISSQN não enfrenta maiores problemas, pois nesta modalidade manifestam-se apenas os chamados serviços diferenciados (tais como assessoria empresarial ou administração conjunta), cujo objeto remonta obrigações de fazer, logo, afetas ao critério material do tributo, bem como guarda correspondência ao item 17.23 da lista de serviços.


Já na modalidade “factoring maturity”, o critério material do ISSQN não é destacado com a facilidade observada na variação anterior, justificando a tese formulada neste trabalho, que induz a necessidade de compreender, com a devida parcimônia, tanto o tributo quanto o fomento mercantil.

Embora ceda ao factor um dado título de crédito, o cliente não o faz no intuito de receber antecipadamente o valor descrito na face, mas por razões de conveniência, visto que a cobrança do título demanda know-how e inevitáveis dispêndios, optando, então, por deixar a execução deste serviço aos cuidados da casa de fomento mercantil.


Em outras palavras, não há efetiva cessão de crédito, mas sim prestação do serviço de cobrança, que satisfaz o critério material do ISSQN por se tratar de inconteste obrigação de fazer. Não obstante, o critério quantitativo não afetará o valor de face descrito no título, mas o quantum (percentual) deduzido daquilo que foi pago ao cliente por ocasião da cobrança.


Não menos controvertida é a tributação do ISSQN sobre o “factoring matéria-prima”, cujo escopo é a intermediação para a aquisição de insumos necessários a produção do cliente. Muito embora a descrita antecipação de recursos não financeiros possa supostamente denotar uma obrigação de dar, constitui-se, de pleno iure, num serviço de intermediação, já que o factor interpõe-se entre cliente e fornecedor, adquirindo o insumo de acordo com as especificações do primeiro.

Destarte, o factor negocia o insumo de forma direta junto ao fornecedor, recebendo, ao final, um percentual sobre o faturamento do produto acabado. Ao agenciar a compra destes insumos, o factor executa latente serviço de intermediação (obrigação de fazer), submetendo-se, por óbvio, ao critério material do ISSQN, ora ilustrado no item 15 da lista de serviços alcançada pelo tributo.

Por derradeiro surge o “international factoring”, modalidade caracterizada pela importação – exportação do fomento mercantil, subdividindo-se nas seguintes subespécies: “Sistema de Dois Factors, Direct Import Factor e Direct Export Factor”.

Nesta, a incidência do ISSQN restringe-se a última subespécie, pela qual empresa-exportadora com sede no Brasil contrata casa de fomento mercantil brasileira para assessorá-la e cobrar o crédito diretamente à empresa-importadora domiciliada no exterior. Com efeito, a prestação do serviço é toda executada e direcionada no Brasil, satisfazendo-se o critério material do tributo.


Ao revés, não há que se falar em ISSQN em sede de fomento mercantil quando operado o refactoring entre export-factor brasileira e import-factor estrangeira, eis que, embora caracterizada a prestação de serviços, a cobrança do crédito é executada pelo último, constituindo atividade-meio do primeiro.


Também se afasta a incidência do ISSQN quando o import-factor é casa de fomento mercantil brasileira contratada diretamente por cliente ou export-factor estrangeiro. Isto porque os serviços prestados pelo factor brasileiro serão objetos de exportação, manifestando efeitos econômicos (resultado) no exterior, domicílio do credor, razão pela qual exsurge a isenção expressa no artigo 2º, I, da lei complementar 116/03.


Finalmente, depreende-se que a incidência do ISSQN sobre o fomento mercantil é observada em todas as modalidades de factoring, contudo não atinge a totalidade de suas operações, eis que afastadas a aquisição de créditos, os casos em que o serviço constitui atividade-meio do factor e a exportação de serviços convencionais.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

COMPARATO, Fabio Konder. Factoring. Revista de Direito Mercantil, v.06. 1972.

DONINI, Antonio Carlos. Factoring. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

FILHO, Marçal Justen. O imposto sobre serviços na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980.

FREITAS, Vladimir Passos de (org). Código Tributário Nacional Comentado. 3ª ed., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

LYRA JUNIOR, Richard Paes. ASPECTOS CONTROVERTIDOS ACERCA DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS DE QUALQUER NATUREZA INCIDENTE SOBRE O FOMENTO MERCANTIL. Monografia – Escola Paulista de Direito – EPD. São Paulo. 2008.

MARTINS, Sergio Pinto. Manual do ISS. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.

MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. Rio de Janeiro: Forense, 1990.

MELO, José Eduardo de. ISS – Aspectos Teóricos e Práticos. 4ª ed. São Paulo: Dialética, 2005.

OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Manual do ISS – Imposto sobre Serviços. Campinas: Editora LZN, 2004.

RIZZARDO, Arnaldo. Factoring. 3ª ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2004.

segunda-feira, 14 de março de 2011

TRAGÉDIA JAPONESA DESPERTA BRASILEIROS PARA ANGRA DOS REIS


"Vamos brincar perto da usina,
deixa pra lá, a Angra é dos Reis,
Por que se explicar,
se não existe perigo..."
(Renato Russo)

Nesta sexta-feira, o Mundo assistiu uma das maiores catástrofes da história moderna, no Japão. Com um terremoto de grau 9,0 na escala Richter, um devastador Tsunami arrasou parte do litoral japonês numa fração de segundos, provocando, até aqui, a morte de mais de 2.300 pessoas.

Não bastasse a tragédia natural, o país vive o medo de uma nova ameaça, consequência da força das águas, qual seja: o vazamento radioativo na usina nuclear de Fukushima. Com as seguidas explosões, a radiação já é uma realidade num raio de 5 km da usina, podendo atingir proporções ainda maiores caso ocorra efetivo vazamento radiotivo.

Na esteira da tragédia japonesa, muitos podem olvidar, mas o Brasil também possui uma usina nuclear, situada em Angra do Reis, Estado do Rio de Janeiro. Construída numa das mais belas paisagens do litoral fluminense, às usinas nucleares brasileiras avançam no quesito tecnologia, fomentadas pelo enriquecimento de urânio, como cediço, matéria-prima para a construção da temida bomba atômica.

Muitos criticam a manutenção das usinas nucleares brasileiras, exaltando o caráter pacífico da Nação brasileira e, fundamentalmente, preocupados com os riscos de um possível acidente no nuclear. No entanto, lamentavelmente, o poderio bélico nuclear de um Estado é expressão de poder e respeito, garantindo assentos no Conselho de Segurança da ONU pelo simples fato de haver usinas nucleares em seus territórios.

Desta feita, a existência de usinas nucleares no Brasil é o que se chama de mal necessário, se é que isso efetivamente existe. O grande problema, a nosso sentir, é descobrir: por que tais Usinas foram construídas em Angra dos Reis? Será que o Município possui estrutura suficiente para o caso de um acidente radioativo?

É fato que a atividade nuclear, em si, traduz riscos, ainda que controlados, a população e ao meio ambiente que a cerca. No entanto, não procede a crítica a construção destas usinas em localidades litorâneas, como Fukushima e Angra dos Reis.

É que a proximidade do mar ameniza os efeitos de um vazamento radioativo, eis que o sal, a contrário do que ocorre em ambientes de água doce, funciona como eficiente isolante, que impede a propagação do material nuclear. Ademais, tal proximidade permite a utilização da água para auxiliar no resfriamento das caldeiras que integram o equipamento nuclear.

Tudo estaria resolvido, não fosse a precária estrutura física e geográfica da região, aliada ao pouco caso dos Governos, de um modo geral, em orientar a população para o caso de um imprevisto. Quem conhece Angra dos Reis sabe que o Município não dispõe de vias adequadas para o escoamento das pessoas em caso de um acidente nuclear.

Em outras linhas, um acidente nuclear em Angra resultaria situação caótica, já que a região não dispõe de espaço suficiente para o adequado e ordeiro abandono/fuga em casos de emergência. Ademais, pouco ou nada se fala a respeito do treinamento de populares nestas situações, denotando verdadeira desídia para eventuais, porém, inequívocos riscos de um acidente radioativo.

Que a tragédia japonesa sirva de reflexão ao governo brasileiro, despertando a atenção de seus administradores para a região onde se encontram as usinas brasileiras. Afinal, se um país da magnitude econômica e cultural do Japão sofre com a tragédia em Fukushima, o que aconteceria se um desastre das mesmas proporções atingisse um país eternamente refém das chuvas, da dengue e do descaso do Poder Público?

segunda-feira, 7 de março de 2011

BRASIL, A SOCIEDADE DA INVERSÃO DE VALORES



"Queria ser como os outros e rir das desgraças da vida
(...) ver a leveza das coisas com humor"
(Via láctea - Renato Russo)



Bom dia, obrigado, por favor, com licença, perdão, são locuções interjetivas corriqueiras e de fácil penetração social, certo? No Brasil, ao menos, não!

É certo que a voracidade capitalista há tempos engole o dia-a-dia do trabalhador, a convivência familiar, seu lazer, etc. Contudo, há alguns anos, era inimaginável conceber que o sistema fosse capaz de "devorar", também, preceitos religiosos, valores éticos, conceitos familiares e simples regras de boa vivência social.

A verdade é que a barbárie intelecto social, fez abrupta, quiçá perene moradia nos lares brasileiros, impondo o que se alcunha de "ditadura do escárnio social". Atualmente, as crianças aprendem em casa o desrespeito ao semelhante, logo se estendendo aos professores, irradiando diferenças sociais e raciais, bem como culminando em muitos delitos, antes "privilégio" de individuos socialmente marginalizados.

Poderia, aqui, citar inúmeros e verossímeis exemplos que ilustram o fadonho e insistente apego de muitos à onda da aculturação, para não dizer estupidez instituída. No entanto, prefiro restringir-me às demonstrações de "pouca inteligência" neste período de festividade popular, como o carnaval.

Ora, mas por que o carnaval?

Elementar, prezado leitor e caríssima leitora. É que o carnaval, apesar de festa pagã e de historicamente reservar excessos por parte de alguns, transformou-se de uma vez por todas numa época de exceções.

Em outras linhas, o período de carnaval incute na cabeça destes "aculturados" a idéia de permissão total e irrestrita à prática de suas manifestações de pouca educação, por vezes temperada a vandalismos. No entanto, o pior de tudo, a meu sentir, é constatar a chancela e o assentimento daqueles que não se embebedam da fonte do escárnio.

A inversão de valores é tamanha que muitos cidadãos, na acepção da palavra, começam não só a relevar, mas, também, justificar dadas atrocidades humanas: carnaval é isso mesmo!

Não, carnaval não é isso!

É certo que a festa sempre teve forte apelo erótico e de liberdade comportamental, mas a sociedade jamais consentiu com determinados abusos, condenando, com certa veemência, a atitude dos marginais travestidos de "foliões".

Atualmente, é possível depreender que a sociedade não se espanta com sujeitos mal-intencionados que abusam do álcool para ofender (fisicamente ou moralmente) às pessoas, reflexamente cometer atrocidades no trânsito, etc.

E o que dizer da família, então? Pais, sob a justificativa de entreter os filhos, depredam patrimônios públicos, desfigurando bustos e estátuas de personalidades brasileiras, arrancando sorrisos dos filhos e dos demais, inclusive daqueles que deveriam zelar pelo bem histórico-cultural.

Ah, mas as brincadeiras continuam saudáveis, não é mesmo?

Já foi o tempo dos confetes e serpentinas, o país dos modismos agora entrega-se às "inofensivas" espumas de carnaval. Tal espuma ou "neve de carnaval", como queiram, seria tolerável, não fosse o hereditário espírito de porco juvenil de alguns.

É que muitos foliões utilizam o produto para, literalmente, provocar e machucar terceiros, dirigindo o aerosol nos olhos de pedestres e transeuntes, que nada tem a ver com a "festa'. A preocupação justifica-se no estudo da Faculdade de medicina da UNICAMP, in verbis:

"Os sulfactantes à base de côco (como a cocobetaína), substâncias químicas que garantem a quantidade e estabilidade da espuma, podem provocar dermatites de contato, que geram coceiras e até urticária. Se a espuma cair nos olhos, o ardor e a vermelhidão são certos. Nas crianças, os sintomas podem ser ainda mais sérios, porque os sulfactantes são muito utilizados na fabricação de xampus, mas dificilmente provocam alergias com este uso, porque o contato com a pele é breve e o produto é rapidamente enxaguado. O problema com as espumas de Carnaval, é que as crianças ficam horas com o produto em contato com a pele".(...) as alergias provocadas por espumas são classificadas como "de memória". Isso significa que se houver irritação da pele uma única vez, essa alergia poderá durar o resto da vida, podendo aparecer e desaparecer, sempre que a pessoa tiver contato com as substâncias contidas no produto."

Da leitura perfunctória deste estudo científico, é possível abstrair que o contato da substância química em partes sensíveis do corpo humano, como os olhos, pode ocasionar sérias consequências, sobretudo em crianças.

Evidente, a depender da situação fática e da idade do indivíduo, a subsunção ao caput do artigo 129 do Código Penal Brasileiro. No entanto, experimente levar o fato ao conhecimento da autoridade policial! Pois é, o Poder Público também incorporou, em partes, a idéia da excepcionalidade do período.

A questão comportamental sob exame é, sem dúvida, de alta indagação, exigindo seríssima auto-reflexão a fim de conhecer seus "porquês". Porém, de imediato, pode-se afirmar univocamente que o carnaval há muito deixou de ser uma simples festividade para se tornar verdadeira "válvula de escape" da estupidez e das mais variadas frustrações humanas.

Por derradeiro, exsurge a eterna dúvida: quem é o mocinho e o vilão de toda esta prosa carnavalesca?